Por Júlio Roldão *
A guerra desencadeada pela Rússia na Ucránia é, para Moscovo, uma “operação militar especial”. Chamar-lhe guerra é, na Federação Russa, um ilícito criminal punível com prisão maior.
A jornalista russa Marina Ovsyannikova que exibiu, em directo, num noticiário de um canal televisivo oficial, um cartaz a pedir o fim da guerra e a denunciar os noticiários como propaganda já foi presa e arrisca pena pesada.
Esta denúncia está a correr mundo com a imagem da jornalista a segurar o cartaz onde se lê com nitidez a mensagem proibida: “Parem a guerra. Não acreditem na propaganda. Eles mentem-vos aqui”.
Esta actuação da jornalista Marina Ovsyannikova é, obviamente, notícia, mas os poucos órgãos de comunicação social russos que ousam referir esta ocorrência fazem-no desfocando as palavras do cartaz exibido.
Há milhares de telespectadores que são testemunhas desta acção da jornalista (considerada pelo Poder de Moscovo como um acto de hooliganismo), mas nem assim as poucas notícias da notícia que saíram na Rússia ousam reproduzir o cartaz de forma legível – poderiam ser acusados de recusar a utilização do eufemismo oficial para esta guerra: “operação militar especial”.
Filha de pai ucraniano e mãe russa, Marina Ovsyannikova gravou previamente uma mensagem a dizer que os pais nunca foram inimigos e a confessar vergonha por ter feito muito pouco para contrariar a propaganda russa que é feita pela comunicação oficial.
Considerando que dez gerações não vão poder fazer esquecer a vergonha da guerra fratricida entre russos e ucranianos, Marina Ovsyannikova transformou-se numa jornalista corajosa que enfrenta uma pena pesada por combater a desinformação instalada.
Hoje sabemos que a desinformação também se alimenta de eufemismos que mentem. A fronteira entre alguns eufemismos e a mentira é, muitas vezes, muito ténue. Há eufemismos que são muito piores do que meias verdades. Um eufemismo pode ser muito mais do que uma figura de linguagem usada para suavizar uma situação difícil num contexto que exija contenção.
Pode ser uma mentira, uma “fake news”.
*Jornalista desde 1977